sábado, 18 de outubro de 2008

O discurso ideológico da democracia racial no Brasil


Em sua obra Marxismo e filosofia da linguagem, Mikhail Bakhtin discuti a natureza ideológica do signo lingüístico e o dinamismo próprio de suas significações. Aborda conceitos importantes para o estudo da linguagem e para a análise do discurso, evidenciando as ideologias que permeiam o discurso e as interações existentes entre a infra-estrutura e a superestrutura. O autor mostra que a ideologia é determinada pelos contextos de onde surgiu determinada manifestação discursiva, do suporte através do qual é transmitida e da realidade social na qual está inserido seu interlocutor. Baseado nesses conceitos o presente texto busca identificar elementos ideológicos na construção discursiva da mídia com relação ao mito da democracia racial no Brasil.

Bakhtin retrata as mudanças lentas e contínuas que as ideologias sofrem ao passar pela palavra e pelos discursos construídos na realidade social até atingir a superestrutura. Para o autor, a infra-estrutura constitui a base das instituições sociais. A realidade, as informações, os fatos e os desdobramentos são essenciais para a constituição social de uma determinada comunidade. Enquanto a superestrutura refere-se a elementos como, camadas ideológicas, mentalidades de uma época, e economia, gerados pela infra-estrutura e pelos reflexos que suas mudanças acarretam.

O autor afirma que todo discurso é carregado de ideologia, e, portanto, possui uma carga de interferência social, pois ao ser manifestado pelo sujeito sofre também influências ideológicas do próprio autor, do interlocutor e, principalmente do contexto discursivo em que se enquadra, pois, a partir do momento que um indivíduo está inserido em uma sociedade, ele sofre influência dela e das experiências pelas quais já passou. Para o autor essa interação social é responsável pela consciência do indivíduo, que é uma consciência coletiva e não individual.

Ao discutir as propriedades da palavra o autor afirma que ela é “um material ideológico, por excelência”. Se as palavras nascem neutras, mais ou menos como estão no dicionário, ao se contextualizarem passam a expandir valores, conceitos e pré-conceitos. O autor mostra que toda palavra está permeada de um conteúdo ideológico, pois “refletem, de um modo mais ou menos evidente, os interesses, as interpretações de determinados grupos, capazes num dado momento histórico, de fazer valer a sua concepção de mundo”. Afirma que a palavra orienta-se para um destinatário e esse destinatário existe numa relação social clara. As interações são entendidas como espaços de imposição de uma classe dominante que constroem mecanismos de controle visando garantir seus interesses pessoais, políticos e econômicos.

Os discursos são fundamentados em ideologias que utilizam de signos e da semiótica na obtenção de sentido e são transmitidos de forma a ocultá-los, buscando a facilitação da absorção pelo sujeito, pois para o autor tudo que é ideológico possui significado e remete a algo situado fora de si mesmo.

A analise do discurso apresentada por este texto é feita baseada nos conceitos discutidos por Bakhtin, buscando perceber no texto em anexo as ideologias presentes que buscam na interação social influenciar a consciência do indivíduo. O texto escrito por Rodrigo Constantino circula livremente por diversos sites, é uma resenha do livro “Não somos racistas – Uma reação aos que querem nos transformar numa nação bicolor”, do diretor de jornalismo da Rede Globo Ali Kamel, que afirma não haver opressão racial no Brasil porque somos “orgulhosos de nossa miscigenação, do nosso gradiente tão variado de cores”.

Não Somos Racistas
Rodrigo Constantino

O racismo, até então inexistente como uma característica predominante da nação brasileira, que sempre teve orgulho de sua miscigenação, pode estar florescendo por aqui. A mentalidade maniqueísta que divide o povo entre brancos e pretos está por trás desse lamentável fato. Eis a tese defendida com sólidos argumentos pelo jornalista Ali Kamel em seu recente livro Não Somos Racistas, uma leitura fundamental para quem pretende compreender melhor os rumos que o país está tomando na questão racial. Ali Kamel deposita uma boa parcela de culpa no governo FHC, que teria avançado nessa remodelagem de uma nação bicolor, onde brancos oprimiriam negros. Tal mentalidade estaria totalmente de acordo com o defendido pelo sociólogo Fernando Henrique Cardoso nos anos 1950. No governo FHC foi criado o Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra, o que já denota este racismo que divide tudo em brancos e negros. Eram os primeiros passos do que viria a se transformar no regime de cotas durante a gestão de Lula, que tem até um Ministério da Igualdade Racial. As sementes que poderão germinar no até então inexistente ódio racial brasileiro foram plantadas por FHC, e bastante regadas por Lula. O país já possui leis que previnem contra o preconceito racial, e a própria Constituição prega a isonomia das leis. Ali Kamel diz: “Num país em que no pós-Abolição jamais existiram barreiras institucionais contra a ascensão social do negro, num país em que os acessos a empregos públicos e a vagas em instituições de ensino público são assegurados apenas pelo mérito, num país em que 19 milhões de brancos são pobres e enfrentam as mesmas agruras dos negros pobres, instituir políticas de preferência racial, em vez de garantir educação de qualidade para todos os pobres e dar a eles a oportunidade para que superem a pobreza de acordo com os seus méritos, é se arriscar a pôr o Brasil na rota de um pesadelo: a eclosão entre nós do ódio racial, coisa que, até aqui, não conhecíamos”.

Em seguida, Ali Kamel dá continuidade à sua argumentação, lembrando que o conceito de raça sequer existe geneticamente: “Definitivamente, não existem genes exclusivos de uma determinada cor”. O próprio conceito de raça em si deve ser superado, e indivíduos devem ser julgados por outros critérios que não a cor da pele, algo totalmente irrelevante em relação ao caráter e capacidade intelectual. Não existem raças superiores ou inferiores, e abraçar tal crença é mergulhar na irracionalidade.

Dando prosseguimento aos argumentos, Ali Kamel mostra como as estatísticas têm sido mal interpretadas ou até mesmo manipuladas. O grosso da população brasileira se considera pardo, um termo vago que abrange várias tonalidades de cor. As estatísticas apresentadas para “provar” um suposto racismo como causa da miséria dos negros têm utilizado todos os pardos como negros, enquanto estes representam uma pequena minoria do total. Fora isso, há uma enorme confusão entre correlação e causalidade, onde passam a considerar como causa da pobreza a cor da pele, sendo que observando mais a fundo os números, fica claro que a pobreza não faz distinção de cor. O Pelé não é vítima de preconceito racial, assim como vários outros negros ricos. Já brancos pobres costumam ser vítimas de preconceitos. Ali Kamel diz existir um “classismo” no Brasil, onde a pobreza em si gera preconceito, mas não a cor da pele. Casos isolados sempre vão existir em qualquer lugar, mas claramente o racismo não é uma marca da nossa nação, tampouco o motivo da existência de tantos pardos e negros na pobreza. Se assim fosse, os brancos seriam oprimidos pelos amarelos, já que estes ganham o dobro do salário daqueles, na média. O racismo, na verdade, não explica a discrepância de renda. Um negro, um pardo e um branco com a mesma qualificação costumam receber o mesmo nível de salário.

Um outro livro fundamental para quem pretende conhecer mais a fundo a questão das cotas raciais é Ação Afirmativa ao Redor do Mundo, de Thomas Sowell. O próprio Ali Kamel usa em seu livro os estudos empíricos do professor negro e PhD. pela Universidade de Chicago. O trabalho de Thomas Sowell é esclarecedor sobre as conseqüências nefastas do regime de cotas. O que era para ser temporário passa a ser permanente e costuma abrigar novas minorias, pois políticos não acabam com privilégios estabelecidos. Onde não havia ódio racial este passa a existir, inclusive com casos de guerra civil, como em Sri Lanka. Apenas os mais afortunados entre a minoria privilegiada se beneficiam das cotas. Em resumo, a ação afirmativa falha em todos os sentidos. Ali Kamel conclui: “Errar, ignorando toda a experiência internacional sobre o assunto, é caminhar conscientemente para o desastre. No futuro, se se repetir aqui o que aconteceu lá fora, não haverá desculpas”.

PS: Para quem acha que o alarde é exagerado e o racismo, mesmo com todo o barulho na defesa de privilégios, ainda está longe de ser nossa realidade, pode fazer um simples exercício: imaginar qual seria a reação dos defensores de cotas e de todas as vítimas do “politicamente correto” caso um grupo de música fosse lançado com o nome “Raça Branca”.


Nossas considerações
Percebe-se que o pensamento ideológico sobre a questão de raça no Brasil está diretamente ligado ao mito, pois cremos que vivemos harmonicamente brancos e negros, já que não há guerra entre raças, e os negros andam livremente pelas ruas. Mas esquecemos que os negros não ocupam os mesmos postos de trabalhos, que a maioria da população carcerária é negra porque lhes faltam oportunidades, que existe uma desigualdade acentuada nas mais diferentes esferas – educacionais, econômicas, e tudo isso é mascarado pelo mito da democracia racial. Quantos jornalistas negros trabalham na empresa de comunicação onde o autor do livro é o diretor de jornalismo?

Gilberto Freyre, importante intelectual da primeira metade do século XX é um dos responsáveis pela implantação desse mito. Em sua obra mais conhecida, lançada em 1933, Casa grande & senzala, o autor comenta como negros e brancos conseguiram na estrutura da fazenda açucareira, viver em “relativa harmonia”. O autor afirma que havia uma “convivência pacífica” entre negros e brancos, citada por ele como vantagem na civilização brasileira.

Ao longo dos anos esse discurso carregado de ideologias foi se estruturando em nossa sociedade, e enquanto isso o negro continuou sendo explorado economicamente pela classe dominante branca. O jornalista Ali Kamel afirma que querem nos transformar em um país bicolor, mas já somos um país bicolor desde quando os negros foram arrancados de seus países de origem, jogados em porões de navios acorrentados e trazidos paro o Brasil, para aqui serem explorados e entregues como objetos aos brancos. Afirma ainda que na pós-Abolição jamais existiram barreiras institucionais contra a ascensão social do negro, mas ignora que após a abolição os negros foram jogados ao acaso pelas periferias das cidades sem emprego, sem moradia, sem educação, sem a mínima condição de sobrevivência.

Com o advento da informação, os meios de comunicação de massa adotaram esse discurso como instrumento ideológico visando o controle social pela legitimação da estrutura vigente de desigualdades raciais, impedindo que a situação se transforme em questão pública e, consequentemente, sujeita a intervenções, garantindo assim o acesso aos mecanismos de controle pela classe dominante. É importante não esquecer que estamos analisando a obra de um diretor de jornalismo de um dos maiores meios de comunicação de massa do mundo (Rede Globo de Televisão), e o acesso a esse conteúdo ideológico elaborado por ele, tem grande circulação pela internet. O jornalista afirma que o racismo não é o motivo da existência de tantos pardos e negros pobres no Brasil, mas qual a explicação para esse fenômeno se ele mesmo afirma que as oportunidades são as mesmas para brancos e negros, e que a cor da pele é algo totalmente irrelevante em relação ao caráter e capacidade intelectual?

Assim baseado nas teorias de Bakhtin, percebemos que os discursos ideológicos exercem grande influência sobre a constituição social de uma determinada comunidade. E na sociedade moderna em que vivemos o excesso e a velocidade de transmissão e de recepção de informações possibilitados pelos meios de comunicação de massa, são utilizados pela classe dominante em suas estratégias de convencimento e como instrumento persuasivo da realidade social. A infra-estrutura do contexto social é alterada pela superestrutura da mídia que constroem mecanismos de controle que projetam a maneira de ver o mundo e de construir o universo discursivo do indivíduo diante de sua realidade social.

2 comentários:

Unknown disse...

Muito bom gostei muito das suas considerações e um assunto muito delicado para se escrever mas e preciso sim discursão para que possamos entender o significado do racismo entre a raça humana.

Lidi disse...

Amei seu blog amigo!!!
Parabéns! Está tudo
muito lindo e os artigos
abordam temas interessantíssimos.

Grande abraçoooooo